Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
(Parte da letra original do samba O Mestre-Sala dos Mares, de Aldir Blanc e João Bosco. As palavras sublinhadas foram censuradas e substituídas por "feiticeiro" e "navegante", para não fazerem menção à marinha. )
Em 1910, a marinha brasileira estava passando por um amplo programa de reequipamento. Por ocasião da sua conclusão, a esquadra brasileira se tornaria uma das mais poderosas do mundo. No decorrer daquele ano, estaleiros inglêses entregaram dois poderosos encouraçados, o São Paulo e o Minas Geraes, armados cada um com 12 canhões de 305 mm, ambos dentro do conceito recém-introduzido no navio britânico HMS Dreadnought, que mudou a aparência dos navios de guerra, a ponto de ser estabelecido como um marco: navios dreadnought ou pré-dreadnought!
O Minas Geraes: com seus 12 canhões de 305 mm, era, juntamente com o São Paulo, um dos encouraçados mais poderosos do mundo em 1910.
Para receber estas poderosas belonaves, foram enviadas à Inglaterra duas tripulações completas. Lá, estes homens, oficiais e marinheiros, receberam treinamento para operarem os novos navios. Entre esses marinheiros, se encontrava o gaúcho João Candido Felisberto.
Nascido em 24 de junho de 1880 numa fazenda próxima ao vilarejo de Dom Feliciano, distrito de Encruzilhada (hoje Encruzilhada do Sul), João Candido era filho de ex-escravos. Aos 13 anos, foi matriculado na Companhia de Artífices Militares e Menores Aprendizes de Porto Alegre, por indicação do capitão-de-fragata Alexandrino de Alencar. Dali, por suas boas recomendações, foi alistado na Marinha do Brasil em janeiro de 1895, sendo declarado grumete em dezembro do mesmo ano, aos 14 anos.Em 1910, João Candido já era um timoneiro experiente e muito bem conceituado entre seus chefes e um líder para seus colegas marinheiros.
A Marinha do Brasil, apesar da atualização tecnológica, não seguia a mesma política no tratamento do seu pessoal e ainda adotava um modelo já superado pela marinha britânica e por outras marinhas, onde a disciplina era mantida com emprego de castigos físicos.
O uso da chibata (uma espécie de chicote curto) na aplicação de castigos fora oficialmente abolido pelo decreto número 3, de 16 de novembro de 1889, assinado pelo presidente Deodoro da Fonseca imediatamente após a proclamação da república.
Mesmo assim, o regulamento da marinha previa açoites com chibatas nos marinheiros faltosos. Como grande parte do efetivo era proveniente de famílias de ex-escravos, isto não causava tanta estranheza.
Porém, a viagem à Inglaterra e o contato com seus colegas ingleses, que haviam feito movimentos rebeldes em 1903 e 1906, pelo fim dos castigos físicos, abriu as mentes dos marinheiros brasileiros, que tiveram então consciência de sua verdadeira situação. E foi também lá que souberam do levante ocorrido na Rússia, a bordo do encouraçado Potemkin, em 1905.
Desta forma, durante a viagem de translado para o Brasil, já havia uma conspiração em andamento, e João Candido era o principal articulador.
João Candido (D), o "Almirante Negro", por volta de 1910. Esta foto é apresentada em alguns locais como se tivesse sido batida durante a leitura do ultimato dos rebeldes da Revolta da Chibata, mas o papel nas mãos de Candido parece impresso em uma tipografia e ser bem mais extenso.
Porém, deste encontro nada resultou de concreto, pois em 15 de novembro de 1910, Nilo Peçanha passou o governo ao Mal. Hermes da Fonseca, que vencera as eleições contra Ruy Barbosa, e era situacionista e conservador.
O poder do voto era reservado para as classes mais bem estabelecidas, e a massa dos mais pobres ficava de fora. A república daquela época era apenas uma extensão do império, onde a nobreza remanescente dele formava, juntamente com a burguesia emergente, uma casta dominante.
Com o novo presidente e um novo ministro, as reivindicações e promessas foram esquecidas e tudo continuou imutável. Em vista deste insucesso, os conspiradores marcaram para o dia 25 de novembro um levante geral dos marinheiros.
Porém, houve um fato que acabou precipitando as coisas e mudando os planos: em 21 de novembro, a bordo do encouraçado Minas Geraes, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi denunciado por um cabo por ter trazido cachaça para bordo, e em represália, o agrediu com uma navalha, ferindo-o. Por isto, foi sentenciado a receber 250 chibatadas (no próprio regulamento, o previsto para faltas graves eram 25!). Durante o castigo, em presença da tropa formada e ao som de tambores, Marcelino perdeu os sentidos, mas nem assim o açoite foi interrompido. A indignação causada por este excesso fez com que o movimento fosse antecipado para o dia seguinte.
Na noite do dia 22, na baía da Guanabara, os marinheiros tomaram o comando do Minas Geraes, enquanto o comandante Batista das Neves jantava como convidado a bordo do cruzador francês Duguay-Trouin, ancorado no porto. Ao regressar ao seu navio, foi agredido pelos revoltosos, e morto a tiros e coronhadas. Destino igual tiveram outros cinco oficiais. O tenente Álvaro Alberto, mesmo ferido a baioneta, conseguiu escapar num bote e remar até ao encouraçado S. Paulo, onde avisou os oficiais do navio, que escaparam para terra.
O movimento se espalhou e os quatro navios principais, que concentravam o poderio da frota, ficaram nas mãos dos revoltosos.
Na manhã do dia 23, o marinheiro Francisco Dias Martins, que tinha mais jeito com a escrita, redigiu uma carta-ultimato por ordem de João Candido. O documento resumia as reivindicações dos revoltosos: o fim dos castigos corporais, melhora na qualidade da comida, e anistia aos revoltosos. E prosseguia dando um prazo de 12 horas para sua aceitação, caso contrário, bombardeariam a cidade do Rio de Janeiro, capital federal, com seus canhões.
As duas primeiras exigências pareciam bem justas e fáceis de serem cumpridas. Porém, quanto à anistia, havia o fato de que o motim é o pior crime militar, e o comando naval dificilmente aceitaria esta condição.
E aí originou-se uma divergência, pois embora congressistas fossem favoráveis às concessões e à anistia, os chefes militares não queriam abrir mão das punições. Entretanto, os revoltosos tinham em mãos o poder real representado pelos canhões das belonaves mais poderosas da esquadra. A população acompanhava pelos jornais a queda de braço entre marujos e o governo e diversas pessoas abandonaram a cidade com suas famílias, buscando abrigo nas cidades serranas, temerosos pelo bombardeio prometido. Outras se juntaram no alto dos morros, para assistir às ações da esquadra.
A imprensa deu grande cobertura durante toda a revolta, e nas notícias destacavam a figura de João Candido, a quem chamavam “o almirante negro”, já que se encontrava de fato no comando da esquadra rebelada.
Porém, houve um fato que acabou precipitando as coisas e mudando os planos: em 21 de novembro, a bordo do encouraçado Minas Geraes, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi denunciado por um cabo por ter trazido cachaça para bordo, e em represália, o agrediu com uma navalha, ferindo-o. Por isto, foi sentenciado a receber 250 chibatadas (no próprio regulamento, o previsto para faltas graves eram 25!). Durante o castigo, em presença da tropa formada e ao som de tambores, Marcelino perdeu os sentidos, mas nem assim o açoite foi interrompido. A indignação causada por este excesso fez com que o movimento fosse antecipado para o dia seguinte.
Na noite do dia 22, na baía da Guanabara, os marinheiros tomaram o comando do Minas Geraes, enquanto o comandante Batista das Neves jantava como convidado a bordo do cruzador francês Duguay-Trouin, ancorado no porto. Ao regressar ao seu navio, foi agredido pelos revoltosos, e morto a tiros e coronhadas. Destino igual tiveram outros cinco oficiais. O tenente Álvaro Alberto, mesmo ferido a baioneta, conseguiu escapar num bote e remar até ao encouraçado S. Paulo, onde avisou os oficiais do navio, que escaparam para terra.
O movimento se espalhou e os quatro navios principais, que concentravam o poderio da frota, ficaram nas mãos dos revoltosos.
Na manhã do dia 23, o marinheiro Francisco Dias Martins, que tinha mais jeito com a escrita, redigiu uma carta-ultimato por ordem de João Candido. O documento resumia as reivindicações dos revoltosos: o fim dos castigos corporais, melhora na qualidade da comida, e anistia aos revoltosos. E prosseguia dando um prazo de 12 horas para sua aceitação, caso contrário, bombardeariam a cidade do Rio de Janeiro, capital federal, com seus canhões.
As duas primeiras exigências pareciam bem justas e fáceis de serem cumpridas. Porém, quanto à anistia, havia o fato de que o motim é o pior crime militar, e o comando naval dificilmente aceitaria esta condição.
E aí originou-se uma divergência, pois embora congressistas fossem favoráveis às concessões e à anistia, os chefes militares não queriam abrir mão das punições. Entretanto, os revoltosos tinham em mãos o poder real representado pelos canhões das belonaves mais poderosas da esquadra. A população acompanhava pelos jornais a queda de braço entre marujos e o governo e diversas pessoas abandonaram a cidade com suas famílias, buscando abrigo nas cidades serranas, temerosos pelo bombardeio prometido. Outras se juntaram no alto dos morros, para assistir às ações da esquadra.
A imprensa deu grande cobertura durante toda a revolta, e nas notícias destacavam a figura de João Candido, a quem chamavam “o almirante negro”, já que se encontrava de fato no comando da esquadra rebelada.
Os navios tomados pelos amotinados içaram bandeiras vermelhas e, quando dois contratorpedeiros tentaram uma ação ofensiva para torpedea-los, foram rechaçados a tiros. Disparos foram efetuados também contra o Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras, e contra o palácio do Catete, sede do governo federal.
Na mesma manhã, contudo, o deputado federal e capitão de mar-e-guerra José Carlos de Carvalho esteve a bordo dos encouraçados S. Paulo e Minas Geraes, iniciando as negociações.
Além desses dois navios, também o encouraçado Deodoro e o cruzador Bahia e mais quatro navios menores haviam aderido à revolta, totalizando mais de dois mil homens em armas.
A bancada da oposição, liderada por Ruy Barbosa, se mostrava favorável às reivindicações dos revoltosos e, em 26 de novembro, o presidente Hermes da Fonseca, aceitando a escolha do congresso, optou pela concessão das exigências feitas pelos amotinados, inclusive sua anistia. Em vista disso, os rebeldes depuseram as armas e entregaram os navios.
Porém, dois dias depois, o governo aprovou um decreto que permitia a demissão sumária de qualquer integrante subalterno da marinha. Em função deste decreto, diversos marinheiros foram excluídos “ a bem da disciplina”.
Em 4 de dezembro, 4 dos principais envolvidos na rebelião, inclusive João Candido, foram presos e levados para a Fortaleza de S.José, na Ilha das Cobras, acusados de conspiração. Os protestos dos políticos da oposição foram inúteis. Em função destas prisões, um novo movimento rebelde foi iniciado no mesmo dia, na própria fortaleza onde os amotinados estavam presos.
Mas, desta vez, a rebelião foi reprimida com extrema energia pela Marinha, que atacou os rebeldes com os canhões da esquadra, e consta que, apesar de uma bandeira branca levantada pelos integrantes da fortaleza, o bombardeio continuou até que, de aproximadamente seiscentos homens, só restassem pouco mais de cem.
Além desses dois navios, também o encouraçado Deodoro e o cruzador Bahia e mais quatro navios menores haviam aderido à revolta, totalizando mais de dois mil homens em armas.
A bancada da oposição, liderada por Ruy Barbosa, se mostrava favorável às reivindicações dos revoltosos e, em 26 de novembro, o presidente Hermes da Fonseca, aceitando a escolha do congresso, optou pela concessão das exigências feitas pelos amotinados, inclusive sua anistia. Em vista disso, os rebeldes depuseram as armas e entregaram os navios.
Porém, dois dias depois, o governo aprovou um decreto que permitia a demissão sumária de qualquer integrante subalterno da marinha. Em função deste decreto, diversos marinheiros foram excluídos “ a bem da disciplina”.
Em 4 de dezembro, 4 dos principais envolvidos na rebelião, inclusive João Candido, foram presos e levados para a Fortaleza de S.José, na Ilha das Cobras, acusados de conspiração. Os protestos dos políticos da oposição foram inúteis. Em função destas prisões, um novo movimento rebelde foi iniciado no mesmo dia, na própria fortaleza onde os amotinados estavam presos.
Mas, desta vez, a rebelião foi reprimida com extrema energia pela Marinha, que atacou os rebeldes com os canhões da esquadra, e consta que, apesar de uma bandeira branca levantada pelos integrantes da fortaleza, o bombardeio continuou até que, de aproximadamente seiscentos homens, só restassem pouco mais de cem.
O governo decretou estado de sítio, invocando a segurança nacional e os sobreviventes foram presos nas celas da fortaleza, que não comportavam tantas pessoas. Segundo seu próprio testemunho, na véspera do natal, João Candido e mais dezessete prisioneiros foram transferidos para a cela de número 5, um buraco escavado na rocha, que acabara de ser desinfetada com cal virgem. A porta de madeira espessa tinha apenas uma estreita abertura como respiradouro. Até hoje não se sabe por qual motivo, a chave da cela não ficou com o carcereiro, mas com o comandante do Batalhão Naval, Capitão-de-Fragata Marques da Rocha, que foi passar a noite de natal no Clube Naval. Desta forma, nem o carcereiro pode socorre-los, enquanto os homens iam morrendo um a um, sufocados pelo cal. No dia seguinte, quando finalmente a porta foi aberta, só João Candido e o fuzileiro naval João Avelino ainda estavam vivos. Marques da Rocha foi absolvido no conselho de guerra instaurado para apurar o ocorrido, e mais tarde, promovido a capitão de mar-e-guerra.
Tardia homenagem: estátua de João Candido na Praça XV, no Rio de Janeiro, inaugurada em 2007. Em Porto Alegre, uma homenagem planejada foi cancelada a pedido da marinha. (Foto: Wikipédia)
Os 105 sobreviventes da revolta da Ilha das Cobras foram condenados a trabalhos forçados nos seringais do Amazonas e embarcados no navio Satélite. Os líderes da Revolta da Chibata escaparam desta sinistra viagem, provavelmente por haver muito interesse dos políticos da oposição e da imprensa no destino que seria dado a eles. Durante a viagem, alguns prisioneiros que tinham uma marca vermelha ao lado do seu nome numa listagem em poder do comandante do navio foram fuzilados e seus corpos jogados ao mar.
João Candido, apesar de "anistiado" pela revolta da chibata, foi expulso da marinha e preso sob as acusações de conspiração e de cooperação com os revoltosos da Ilha das Cobras. Os traumas e maus tratos sofridos na prisão o haviam deixado mentalmente perturbado e ele contraíra tuberculose. Em abril de 1911, foi internado no Hospital dos Alienados, como louco e indigente. Alguns meses depois, voltou para a prisão, para aguardar o julgamento dele e de outros dois acusados. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que prestava assistência aos negros, contratou advogados para representa-los. O julgamento dele e dos outros acusados durou dois dias até que, na madrugada do dia primeiro de dezembro de 1912, todos foram absolvidos das acusações. Apesar disso, nunca foram reintegrados à marinha.
Abandonado e estigmatizado, mesmo assim conseguiu se recuperar mental e fisicamente, tentou trabalhar na marinha mercante, mas estava marcado como "elemento perigoso" e não foi aceito. Acabou virando pescador, mas teve problemas com o alcoolismo.
Até sua morte, em 1969, podia ser visto como um anônimo vendedor de peixe nas “pedras pisadas do cais” da Praça XV, no Rio de Janeiro.
Até sua morte, em 1969, podia ser visto como um anônimo vendedor de peixe nas “pedras pisadas do cais” da Praça XV, no Rio de Janeiro.
Em 1975, Aldir Blanc e João Bosco compuseram a música “ O Mestre-Sala dos Mares”, em homenagem à João Candido. Entretanto, na época o país estava sob o regime militar e a letra foi censurada, teve que ser alterada e os termos que faziam referência à marinha foram substituídos. Como se vê, a história não o esqueceu. Nem a marinha...
Nota: Em 23/07/2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a anistia póstuma a João Candido Felisberto, conforme os termos propostos em 2002 pela senadora Marina Silva, o que abre caminho para um processo de reintegração póstuma na Marinha do Brasil.
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