segunda-feira, 15 de março de 2010
AS CIGANAS BRASILEIRAS
Segundo estudos do antropólogo Frans Moonen (2008), a primeira aparição oficial de ciganos/as[1] no Brasil foi em 1574, quando a família do cigano João (de) Torres foi deportada de Portugal para a colônia (esse caso, ao que parece, foi um caso isolado, numa situação única naquele momento). O expurgo dos grupos ciganos[2] em Portugal deveu-se ao fato de que a Península Ibérica era considerada a região mais devotada aos dogmas do Catolicismo. Embora os grupos ciganos se identifiquem como religiosos, (não possuem uma religião oficial, podendo pertencer às diversas religiões; dependendo do local onde permanecem) algumas de suas práticas ancestrais divergiam com as crenças da Igreja Católica, como as cerimônias próprias de casamentos, de batizados, as práticas divinatórias de suas mulheres (quiromancia, leitura de cartas, etc.), suas danças, suas festividades particulares, e eram comumente vistos como pagãos. Desta forma, sua permanência em solo português não era desejada, pois condizia com um comportamento não tolerado pelas sociedades católicas, afinal, eram considerados como imorais (Teixeira, 2008). As deportações iniciaram-se fortemente a partir de 1686, quando da necessidade de povoar as terras nordestinas (a preferência foi pelo Maranhão) e para manter essas comunidades ciganas afastadas das áreas de riqueza naquele momento e dos portos brasileiros (Moonen, 2008). No século seguinte, Salvador tornou-se a principal cidade para a comunidade cigana no país, agregando muitos deles. Teixeira (2008) explica que a deportação de ciganos/as para o Brasil teve continuidade até o final do século XVIII: "A deportação de ciganos portugueses continuou pelo menos até o final do Século XVIII. De 1780 a 1786, o secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, enviou grupos de 400 ciganos anualmente para o Brasil" (p.21). A cidade do Rio de Janeiro foi o local onde as comunidades ciganas tiveram alguma valorização, sendo que muitos deles acumularam riquezas e trabalharam em cargos oficiais durante o século XVIII e início do XIX.
As suas danças e músicas eram presença constante nas festividades da família real (Moonen, 2008). Entretanto, apesar dessa relação entre eles, a sociedade continuava a estigmatizar os grupos ciganos como ladrões, vagabundos, entre outros, depreciando-os e, dessa forma, enaltecendo os princípios cristãos (religião do povo em construção na colônia e religião da metrópole). Apesar de esses grupos terem se adaptado e trabalhado com diversas atividades, entre elas o de comerciantes de escravos, ele se tornou um incômodo para as elites brasileiras do século XIX, que visavam construir uma identidade nacional baseada numa "limpeza étnica" disfarçada de "reformas urbanas", de modernização. Visavam, sobretudo, o patriotismo enaltecendo a "raça" nacional, a miscigenação entre o europeu, o africano e o indígena, mas sem mencionar a população cigana, segundo Teixeira (2008, p.48): "no Brasil eram tidos como raça maldita, inferior e, que para o mal da nação, não se misturava".Tínhamosa importante questão de que essas comunidades estavam perdendo suas riquezas devido à abolição da escravatura, à mão-de-obra assalariada, às imigrações incentivadas pelo Brasil, foi um fator importante na perda de qualificação positiva dessas comunidades para as elites cariocas (Teixeira, 2008).
Vamos agora direcionar nosso olhar para a realidade das ciganas no país. O que o autor analisa é que havia uma contradição entre o comportamento das mulheres ciganas e das "mulheres de elite" no século XIX. A "mulher de elite" ficava restrita ao seu lar, se inteirando dos assuntos apropriados para ela, já a mulher cigana tinha a liberdade de ir-e-vir, e por esse mesmo motivo, acabava por conhecer melhor a realidade da sociedade que a cercava. Contudo, existem diferenças entre a visão de ciganos e de ciganas para a sociedade nacional. Os ciganos eram descritos, geralmente, como sujos, preguiçosos, vadios, pobres, livres e ladrões. Sobre as ciganas, tem-se que elas praticavam a quiromancia, e mendigavam pelas ruas, quando necessário. Quanto aos estereótipos físicos, isto é, relativos à aparência, Teixeira (2008) pesquisou que algumas qualidades do modelo de beleza grego eram assimiladas para a comunidade cigana pelo olhar do Outro. Isto significa que os homens ciganos eram descritos como belos homens, de cabelos negros e olhos marcantes. Já as mulheres ciganas: "as mulheres jovens eram consideradas belas e atraentes, mas era uma beleza fadada a desaparecer rapidamente [...] algumas velhas são descritas como decrépitas" (Teixeira, 2008, p.65).
A respeito dos corpos, Simone de Beauvoir (2002) ressaltou que o corpo não é uma coisa e sim uma situação: "é a nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos" (p.54). Mas os e as ciganos/as são corpos ainda inexistentes em solo nacional, pois, na pesquisa de Moonen (2008), uma das grandes carências dessa população é o acesso negado à cidadania. Negado porque lhe é dificultado através de burocracia brasileira. Os registros civis, como bem observou o pesquisador, são uma raridade entre esses povos. Mas, não porque eles não os queiram, e sim por causa dos trâmites e barreiras que lhes são impostas para ter acesso aos documentos necessários, sendo ainda uma etnia que possui grande parte de seus direitos negados. Sobre a educação das ciganas, Moonen destaca que é uma questão delicada (até pela falta de documentos comprobatórios e exigidos para a matrícula, bem como o material didático, etc.), e das poucas crianças que freqüentaram a escola (dentro da localidade citada, um rancho de ciganos/as em Sousa – PE): "Pelo menos três meninas desistiram de frequentar as terceira e quarta séries, pelo fato de estas serem ministradas à noite. Entre a escola e os ranchos fica uma área deserta e, não sem motivo, as meninas tinham medo de serem molestadas por elementos não-ciganos da cidade de Sousa" (Moonen, p.154). Ou seja, o problema da falta de educação, ou educação precária, era mais grave para as meninas ciganas, já que havia o perigo da violência sexual.
Sem educação e preparo profissional, restam a essas mulheres os serviços de mendicância ou quiromancia pelas ruas das cidades. Entretanto, essas atividades têm um peso muito forte na maneira como são enxergadas pela sociedade de não-ciganos/as, como veremos nesse pequeno trecho da pesquisa de Moonen (2008):
Outras pessoas quando são abordadas pelas vigaristas, afastam o mal pela raiz e afirmam que as ciganas são um bando de vadias. "Essas vadias, trambiqueiras vivem no meio da rua perturbando os outros. Elas esperam uma oportunidade para roubar", afirma MA, de 50 anos. Ela acredita que todas as pessoas deveriam expulsar as ciganas da Lagoa" (João Pessoa, O Norte, 16.10.93). [...]
Depois disto tive contato com estes ciganos, Calon oriundos da Bahia, durante o mês seguinte e constatei: [...] (b) que nunca jornalista algum teve coragem de visitar pessoalmente o acampamento cigano; (c ) que apenas meia dúzia das mulheres adultas sabia ler a mão e "saía pra rua" (na realidade uma praia distante, mas muito visitada por turistas, ou então a 'Lagoa', no centro de João Pessoa) e que as outras que não dominavam esta arte, nunca saíam do acampamento(p.164- 165).
Se a vida dos ciganos foi bastante complicada no Brasil, devido ao preconceito, imaginemos então a vida das ciganas, portanto. As mulheres ciganas foram impossibilitadas de desenvolverem-se em sua plenitude por quase os mesmos motivos que todas as mulheres tiveram seu desenvolvimento dificultado no passado: pelo fato de pertencerem ao sexo feminino e ao gênero mulher.Ademais,como vimos, as ciganas ainda possuem outras características dadas a elas pela sociedade não-cigana como mulheres vagabundas, trapaceiras, falsas, entre outros. Entretanto, nada tão diferente do modo como a sociedade trata as demais mulheres que se afastam de algum estereótipo adotado (como a "Amélia" no passado). Mas se para as mulheres ocidentais já foi complicado romper com as normas vigentes a respeito do comportamento de homens e mulheres, a lutar pelo reconhecimento da mulher como sujeito da história, a lutar pelos direitos das mulheres, para as ciganas desassistidas essa luta é bastante delicada. Delicada porque envolve características culturais, étnicas e valores morais de acordo com cada sociedade, mas o(s) feminismo(s) deve(m) assegurar que cada cigana tenha o direito de ser respeitada, de ter capacitação profissional, de ter uma organização feminista para apoiá-las em suas necessidades, de exercer sua cidadania.
o(s) feminismo(s) e as ciganas brasileiras: o diálogo?
Os movimentos de mulheres e os movimentos feministas emergiram como uma força em potencial por toda a América Latina devastada pela ditadura.A existência de uma "dominação masculina" nos termos de Bourdieu[3] em ambientes domésticos e na arena pública levou as feministas a proclamarem a autonomia de seus movimentos e a criação de instituições verticais, como encontros e Congressos específicos, nos quais estavam presentes: operárias metalúrgicas, empregadas domésticas, mulheres politizadas, mulheres da periferia, ativistas políticas, etc. que produziam plataformas de lutas que incluíam direitos específicos (Moraes, 2003).
Devido ao poder de mobilização conferido a esses movimentos de mulheres e feministas, alguns organismos internacionais, com forte influência da hegemonia norte-americana, propõem "parcerias" no sentido de realizar uma integração desses movimentos com o sistema social, é o início das ONGs de cunho feminista na América Latina (patrocinadas pela norte-americana Ford Foundation e a holandesa NOVIB).
Na "Década da Mulher", estabelecida pela ONU em 1970 (e, dentro dessa o "Ano Internacional da Mulher", em 1975), as campanhas nacionais desses movimentos denunciaram as mortes de mulheres por crimes "de honra", o sexismo em livros escolares e o assédio sexual (Moraes, 2003:14). Assim, a agenda feminista foi incorporando demandas cada vez mais específicas. Barsted (1994) informou que ao longo da organização do Movimento, duas questões básicas foram aprofundadas, "dentro de um universo temático mais amplo", que influenciaram consideravelmente na proposição de políticas públicas: saúde/sexualidade e violência. Estas questões estavam inseridas num contexto maior que era o de uma "intensa mobilização para eliminar da legislação em vigor todas as formas de discriminação contra as mulheres", tal como recomendava a Convenção das Nações Unidas de 1979 – Convenções Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (p. 43).
Os movimentos feministas[4] se revelaram atores importantes que tomaram para si a tarefa de representar os direitos das mulheres e lutarem por esses direitos dentro da sociedade. O feminismo foi desenvolvido como uma espécie de protesto contra a exclusão das mulheres da vida política, do meio público, com o objetivo de eliminar a diferença sexual na política (Scott, 2005). Entretanto, como é um conceito que forneceu bases a uma teoria, está sujeito a interpretações e reinterpretações de acordo com o contexto histórico no qual ele se desenvolve. E, sendo assim, é o lugar, ou arena (Schimidt, 2004) onde são escutadas as vozes daquelas que reclamam seu espaço, onde discursos são proferidos, analisados e passíveis de ação. Desta forma, e de acordo com Scott (1998, p.116), percebemos que "a estrutura social constrói as relações homens/mulheres e a ideia da mulher". Portanto, a estrutura social também constrói a relação mulheres/homens e a ideia de uma mulher cigana. Assim sendo, a desconstrução do pensamento coletivo acerca das características das ciganas deve ser realizada com a finalidade de uma construção igualitária das ciganas como sujeitos da história brasileira. Essa desconstrução e construção devem ser baseadas na informação da sociedade e assim, na quebra do preconceito, pois como disse Elvia P. Arriola (1994):
A igualdade está inextricavelmente ligada ao fenômeno social que chamamos de discriminação. No nível mais simples, ocorre discriminação sempre que as interações entre pessoas se baseiam em suas diferenças pessoais. O estabelecimento de diferenças entre pessoas é muitas vezes encarado como nossa reação natural à vasta diversidade de experiência humana (p.391).
Sabemos que uma cultura diferente da qual se foi criado é um elemento enigmático e que causa estranheza, porém no caso das ciganas a questão é um pouco mais delicada. Dentro da cultura a qual chamamos de cigana, existem diversas culturas, ou seja, não existe unicidade na cultura cigana, pois esta tende a adaptar-se aos locais por onde passa, e assim, estar em constante mutação e inovação de suas culturas. Pela simples ignorância da versatilidade de outras culturas (principalmente de culturas que não estão dentro de alguma nação), os ciganos e as ciganas são vítimas de uma visão equivocada presente no Brasil desde sua colonização. Entretanto, para que se possa reverter esse quadro discriminatório acerca das ciganas (e dos ciganos também) é necessário evidenciar essa questão praticando a discriminação, tal qual nos fala Joan Scott (1998), de que ao evidenciar os riscos que um determinado grupo social passa, nós (pesquisadoras e pesquisadores) corremos o risco de essencializá-los. Mas tal risco deve ser corrido, isto é, esse paradoxo deve ser enfrentado com a finalidade de resgatar a dignidade dessas pessoas e dar o devido lugar a elas na história, assim como torná-las cidadãs efetivas, com seus direitos e deveres, sem preconceitos e discriminações.
Assim sendo,o(s) feminismo(s) é o labirinto no qual os fios do preconceito, da discriminação, da desigualdade vão se perdendo, a arena de discussão ideal para esse resgate histórico e pelos direitos das mulheres ciganas do Brasil, como disse Vera Soares:
Diferentes motivos levam a apontar o feminismo como um projeto que teve êxito em tornar visível uma problemática que antes não estava presente nos movimentos populares, nem nos movimentos sociais tradicionais, nem tampouco no nível político, seja de esquerda, de direita ou centro. Ao mesmo tempo em que apontou para a exclusão das mulheres na sociedade, criou novos paradigmas para análise desta situação e inscreveu-se como tema das pesquisas acadêmicas – as idéias do feminismo se instalaram em diversos espaços do social e do teórico (p.22, 1994).
Desta forma, o(s) feminismo(s) pode elucidar as diferentes representações da mulher nas diferentes sociedades, e explicar e separar a relação entre o aspecto biológico[5] dos corpos, a personalidade e o comportamento que determinam a posição social das mulheres. Assim, percebemos a reprodução de certos estereótipos femininos em sociedades diferentes (Nicholson, 2000).
Ou seja, o(s) feminismo(s) pode(m) tornar visível a situação das ciganas brasileiras, expondo seus problemas diante da sociedade e exigindo a igualdade no tratamento dispensado a elas, porém, é necessário que façamos uma pergunta: Por que o(s) feminismo(s) não olhou para as mulheres ciganas? Quiçá elas já tivessem seus direitos assegurados? Ou, como temos um parco conhecimento sobre suas culturas, nós deduzimos que não era preciso olhar para elas? Infelizmente, o material para pesquisas é escasso, ainda mais sobre mulheres ciganas brasileiras, mas o(s) feminismo(s) pode reverter esse quadro, investindo em pesquisas sobre esse universo ainda inexplorado pelo(s) movimento(s).Contudo, é vital que se desconstrua o pensamento coletivo acerca das ciganas brasileiras, e coloquem-nas como sujeitos histórico-sociais, tal qual Butler (1998, p. 34) afirmou: "Desconstruir [6]não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas".
O(S) FEMINISMO(S) E AS mulheres CIGANAS: paira UM OLHAR FEMINISTA SOBRE elas?
De acordo com a Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI), cerca de um milhão de ciganos/as vivem em território brasileiro (Juste, 2005). Destes, cerca de 250 mil vivem em acampamentos, segundo dados da Pastoral da Criança (Gandra, 2008). Entretanto, apesar desses números serem estatísticas é fato que essas comunidades têm grandes carências na área da educação, saúde, trabalho, por exemplo. Mas e as mulheres ciganas? Além dessas carências de toda a população cigana, elas ainda enfrentam outras mais: os mais de 30 anos de Feminismo(s) no Brasil não foram suficientes para incorporar a demanda dessas mulheres por proteção e respeito. Nesse artigo não pretendo analisar as comunidades ciganas em sua formação patriarcal, em sua história, mas sim o olhar que a sociedade repousa nas mulheres ciganas e quão invisíveis elas estão pelos movimentos feministas. As mulheres ciganas foram estigmatizadas no Brasil como "miseráveis e desonestas quiromantes", mas com o passar do tempo outros rótulos lhes foram impostos, tais como "uma mulher forte, sensual e, ainda que vingativa e passional, fascinante" (Teixeira, 2008, p.08).
Quero refletir rapidamente sobre as imagens de ciganas que vemos quando acessamos o buscador Google da internet. São imagens de mulheres jovens, lindas, esculturais, com vestimentas provocantes, cabelos esvoaçantes, peitos fartos, cinturas bem marcadas, poses sensuais e poses lânguidas. Na maior parte de blogs destinados a "discutir" essas comunidades ciganas e seus hábitos culturais, vemos esse tipo de imagem. Em cerca de três meses de busca pelo Google encontrei poucos blogues no qual também mostravam pinturas de ciganas mais velhas, mais corpulentas, em suma, mais reais. E uma artista[7] conhecida entre os/as admiradores/as dessa cultura que também retrata ciganas de formas variadas, isto é, magras, corpulentas, novas, envelhecidas, crianças, porém há apenas algumas telas com essas características mais reais, embora não encontrei telas de ciganos mais velhos, mais corpulentos ou garotos. Porém ainda assim, a maioria de suas telas retrata belas e jovens ciganas. Ou seja, essas imagens sensuais reforçam o estereótipo da mulher cigana como uma mulher extremamente sexual, provocativa, o que em nada reflete a verdade sobre elas.Existem sites e blogues (como o já citado) que se dedicam a quebrar esse estereótipo[8], mas são poucos e pouco divulgados. Há um contrasenso na sociedade: se por hora as mulheres ciganas são tidas nas imagens e representações como jovens sensuais, por outra, as mulheres (reais) nas ruas são vistas como "charlatã[s], maltrapilha[s] e trambiqueira[s]" (Veloso, 2008). Segundo a pesquisa de Letícia Veloso, o preconceito em torno da mulher cigana a impede de se identificar como tal em situações como o mercado de trabalho, na entrevista de emprego. Há um relato interessante em seu texto feito por uma cigana (Maria José Cotê), que reproduzo aqui: "Uma vez, me disseram que não poderia ser cigana, pois, era limpa e educada. O que essas pessoas não imaginam é que as ciganas andarilhas (que vivem em acampamentos) têm uma vida sofrida e de luta" (Veloso, 2008). O antropólogo Frans Moonen (2008) realizou uma breve pesquisa sobre as comunidades ciganas de Souza (Paraíba) em 1993, e de suas análises podemos retirar para nosso estudo uma passagem muito incômoda. Moonen não comprova a informação, entretanto, ele pede em seu texto que "pessoas competentes da área médica" investiguem essa informação, que é um indicativo de que poderia sim ter ocorrido, como já houve casos parecidos no Nordeste no qual se trocavam as esterilizações (gratuitas) de mulheres por votos políticos. Assim:
Perguntado sobre a diminuição do número de filhos, vários ciganos responderam que era por causa da pobreza e da miséria em que vivem hoje [...] Mas houve também quem acusasse médicos de uma maternidade local de esterilizar mulheres ciganas. Pelo menos umas dez mulheres já fizeram cesarianas, e parte dessas mulheres teve as trompas ligadas. Em pelo menos três casos, a laqueadura foi feita sem conhecimento e sem consentimento do casal, apresentando os médicos depois uma mistura de justificativas médicas e sociais (do tipo: "a senhora poderia morrer se tivesse outro filho" e "a senhora não tem condições de criar mais outros filhos"). Outra cigana esterilizada, no entanto, elogiou a atitude dos médicos e confirmou que, pelo menos, no seu caso particular, a laqueadura realmente tinha sido necessária por motivos médicos e que tinha concordado antes (p. 140).
Moonen ainda informou que pouco se sabe sobre as atividades, de fato, das ciganas do município pesquisado por ele, mas acredito que pouco se sabe sobre as ciganas brasileiras. Como vivem? Quais as dificuldades? O que esperam da vida? E mais, podemos perceber alguma influência dos feminismos dentro desses grupos? Por enquanto o material bibliográfico é escasso no país, e pesquisas de campo necessitam serem realizadas para nos fornecer as respostas. Afinal, somente dessa forma poderemos apreender as mulheres ciganas, como bem ressaltou Beauvoir (2002):
Assim como não basta dizer que a mulher é uma fêmea, não se pode defini-la pela consciência que tem de sua feminilidade; toma consciência desta no seio da sociedade de que é membro [...] uma vida é uma relação com o mundo; é escolhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que nos preocupam (p. 69).
Seguindo essa mesma linha, Linda Nicholson (2000) afirmou que o corpo acaba por se tornar uma variável que não mais fundamenta as noções distintivas entre masculino/feminino, mas sim é o elemento "potencialmente importante" na maneira como essa distinção "permanece atuante em qualquer sociedade" (p.15). Assim, existe uma tendência nas sociedades patriarcais a se pensar na identidade sexual como um dado natural, imutável, Mas, segundo a autora, para que se possa desconstruir essa noção, faz-se necessário enfraquecer essa tendência através da contextualização histórica. Portanto, ao entendermos como se deu o processo de "enraizamento histórico" da identidade sexual na forma de algum "produto de um sistema de crenças específico de sociedades modernas ocidentais", é possível compreender a "diversidade profunda" na qual essa distinção masculino/feminino pode tomar corpo (Nicholson, 2000, p.15).
Há uma necessidade pungente de uma práxis feminista quanto às necessidades das mulheres ciganas por sua integralidade na sociedade. Há uma necessidade latente de se historicizar as mulheres ciganas no Brasil e suas relações dentro e fora de suas sociedades, seu pertencimento à sociedade brasileira, cidadã brasileira como as mulheres de outras etnias. O(s) feminismo(s) deve buscar entender o que significa ser uma mulher cigana no Brasil, para assim interpretá-la, analisá-la, e poder contribuir para desenvolver políticas públicas para essa parcela da sociedade, levando em conta a sua especificidade. Esse olhar feminista deve ser lançado sobre essas mulheres e suas histórias, para que se reconstruam suas identidades, para que os/as brasileiros/as compreendam a importância histórica desses sujeitos "filhos e filhas do vento" e os/as incorpore como compatriotas, com respeito mútuo em busca de uma sociedade mais igualitária. "
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